"Tigrinho" é a forma que se convencionou a chamar jogos do tipo "slot", que têm um mecanismo assemelhado ás máquinas caça níquel. O apelido é derivado de um dos mais famosos nomes desse mercado, o "Fortrune Tiger". Para ganhar, o apostador precisa acertar a combinação de três figuras iguais em três fileiras para receber prêmios em dinheiro.
A confeiteira Janaína*, de 35 anos, procurou um desses grupos no ano passado "no desespero", como diz. O estopim para perceber a perda de controle no jogo foi o dia em que apostou (e perdeu em poucas horas) todo o dinheiro que a família tinha para pagar o aluguel da casa, de R$ 1,4 mil. Moradora de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, ela está há três meses sem jogar.
— Ainda não me sinto bem. É como se faltasse um pedaço de mim — conta a confeiteira, que virou administradora de um grupo do WhatsApp de apoio entre jogadores compulsivos. — Também comecei a ter insônia, então passo uma parte da noite de prontidão no grupo, quando precisam de apoio.
Em um desses grupos com 300 pessoas, está a cuidadora de idosos Roberta*, de 42 anos, moradora de Tatuí, no interior paulista. Uma das funções dela é distribuir senhas para o aplicativo que bloqueia o acesso a jogos no celular e ajudar novos membros a instalar o sistema. Ela conta que começou a apostar em slot (um game tipo "tigrinho", em que o apostador ganha quando símbolos aleatórios se alinham) no ano passado em meio a um tratamento para o câncer.
— Eu pensava: se a pessoa está ganhando, será que eu não vou ganhar? E aí você joga. E fica cega. Eu jogava o dia inteiro — Roberta está há 90 dias sem apostar e longe das redes sociais para não ter "gatilhos".
Não se trata, porém, de apenas um hábito ruim. A compulsão por jogos é conhecida e investigada pela ciência há anos. Nos consultórios, normalmente, o quadro ganha o nome de ludopatia ou transtorno do jogo. Recentemente, porém, o problema vem ganhando novos contornos justamente por conta da disseminação de plataformas de jogos de azar on-line. É o que afirma Rodrigo Machado, psiquiatra do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (Pro-Amiti). Ele conta que o programa, referência no país para tratamento de compulsões, incluindo as do jogo, tem sido mais procurado ano a ano.
— Geralmente a pessoa procura ajuda quando está na pior situação possível. Quando já se afundou em dívidas, quando estão em extrema vulnerabilidade. Esse cair da ficha, infelizmente, vem da pior forma — afirma o médico, que chama atenção para a lacuna de dados no Brasil que mapeiam o tamanho do problema. — É um buraco tão baixo que a gente ainda não consegue saber a real magnitude dele.
No ano passado, o programa do HC registrou o maior número de inscritos desde 2015, com um total de 160 participantes, 175% a mais do que em 2022.
O último estudo epidemiológico sobre o tema no país foi publicado em 2010, com a estimativa de que 2,3% dos brasileiros eram jogadores patológicos ou problemáticos. Procurado, o Ministério da Saúde não forneceu dados sobre quantas pessoas procuraram ajuda por conta do vício em jogos. Uma pesquisa publicada no início de agosto na The Lancet, porém, oferece um panorama global. A análise reuniu 3.692 estudos sobre o tema em 68 países e indicou que 1,4% dos adultos em todo o mundo estavam envolvidos em jogos de azar de forma problemática.
Quando vira problema
Há sinais de alerta quando a prática torna-se um problema de ordem médica. O uso do jogo como forma de aliviar alguma angústia, tentativas fracassadas de controlar a atividade e a necessidade de apostar quantias crescentes de dinheiro estão entre os sinais de jogo problemático, conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Outros sinais preocupantes incluem tentativas de recuperar perdas financeiras e prejuízos na vida pessoal, social ou profissional.
Os especialistas concordam que a facilidade em acessar esse tipo de aplicativo, além de eventuais promoções e bônus, dificultam ainda mais a vida de quem tem uma relação de dependência com o jogo.
— Um dos fatores de risco mais importantes para o vício é o fácil acesso. Nos últimos 30 anos, o aumento do acesso ao jogo digital (nos Estados Unidos) levou a taxas crescentes de dependência em jogos de azar — diz Anna Lembke, psiquiatra da Universidade de Stanford. E autora do livro “Nação Dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes (e o que fazer para mudar)”. — O que é pior, as corporações que possuem e operam sites de jogos de azar on-line intencionalmente minam os esforços dos jogadores viciados para se recuperarem. Elas bombardeiam pessoas vulneráveis com centenas de mensagens promocionais, que por si só servem como gatilho para recaídas.
A dificuldade em colocar limite em algo tão próximo foi o que fez a mineira Emanuela Rufino, de 25 anos, quebrar o próprio celular, há um mês, e decidir ficar sem o aparelho. Ela começou a apostar em 2021, em uma plataforma com o jogo do “aviãozinho”. Depois de um ano com ganhos, a perda de recursos financeiros foi o atalho à dependência.
— Eu já fiquei quatro meses sem jogar. E aí voltei, pior ainda. Tive abstinência, com dores de cabeça, calafrio e enjoo. Chegou em um momento que pensei em fazer besteira porque eu me vi de fato desesperada — conta a jovem, que trata a compulsão com um psiquiatra da rede pública de saúde.
Os casos de vício no "tigrinho" têm chegado aos consultórios, afirma o psiquiatra Thiago Henrique Roza, professor adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que atende pacientes com o transtorno de jogo.
— Muitos pacientes que atendo começaram a ter contato com esses jogos de cassino online no último ano ou nos últimos meses. Em termos de prevalência, são os casos que mais têm aumentado na minha experiência clínica — diz.
"19 empréstimos"
Apesar do problema afetar todas as classes sociais, os danos mais prevalentes aparecem em grupos sociais mais vulneráveis. O fenômeno é chamado de “paradoxo dos danos do jogo”, explica Heather Wardle, professora da Universidade de Glasgow, que pesquisa os efeitos das apostas online em diferentes países:
— Aqueles que são social e economicamente mais desfavorecidos são menos propensos a jogar, mas muito mais suscetíveis a experimentar danos relacionados ao jogo quando o fazem. Isso é obviamente uma tendência muito preocupante — afirma Wardle.
Um dos maiores especialistas em jogo compulsivo no Brasil, o psiquiatra Hermano Tavares, fundador do Pro-Amiti, na USP, explica que não existe um programa em andamento e em escala nacional desenhado para vício em jogo.
— O SUS hoje não tem nenhum programa específico para treinamento de profissionais que estejam capacitados, habilitados a receber, localizar, identificar esse tipo de problema, orientar o paciente, sua família e tratá-lo Isso não existe no Brasil hoje — afirma. — Há o Centro de Atenção Psicossocial (Caps, ligado à estrutura do Ministério da Saúde), mas o profissional que está no Caps está treinado para tratar álcool e drogas, não o transtorno de jogos.
Ele diz, porém, que uma pessoa com dificuldades emocionais e financeiras pode ter uma porta de entrada para o tratamento nos Jogadores Anônimos (JA). É o serviço mais abundante para esse tipo de atendimento, diz Hermano. São ao menos duas reuniões on-line por dia, sete dias na semana. Na Grande São Paulo, diz o psiquiatra, há reuniões semanais dedicadas a esse acolhimento em diferentes regiões da metrópole. A irmandade é originária dos Estados Unidos, e começou seu reconhecido trabalho na década de 50.
O GLOBO acompanhou uma das reuniões on-line, em uma noite de quarta-feira, com cerca de 60 pessoas de diversas cidades do país. A primeira a falar foi uma mãe de um jovem com 23 anos que havia descoberto há três meses o vício do filho. Uma senhora, há 90 dias sem jogar, disse que ainda sentia medo de pegar o celular na mão. Um jovem compartilhou que, endividado, tinha feito 19 empréstimos nos últimos meses. Uma parte para ter dinheiro para jogar, outra para “ter o que comer”.
Em avanço
A regulamentação das apostas online — que começa a valer a partir de janeiro — trará também legalidade aos jogos de cassino online, os tais “tigrinhos”, que buscarem autorização do Ministério da Fazenda e se adequem às normas definidas pelo governo. Entre as determinações da legislação está a obrigação de suspender apostadores “em risco alto de dependência”, ter alerta para o tempo de jogo excessivo e impedir o uso por pessoas com diagnóstico comprovado de ludopatia. A fiscalização caberá a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), do Ministério da Fazenda, mas especialistas alertam para o desafio de fiscalização:
— É uma secretaria recém-criada que ainda está sendo estruturada. É muito difícil barrar (as plataformas que operem de maneira ilegal) e fiscalizar tudo — diz Mariana Tumbiolo, sócia no escritório de advocacia Madruga BTW.
Especialistas em adicção ponderam que medidas como o bloqueio de apostas ao longo da madrugada seriam um atalho inicial para coibir comportamentos nocivos nesse tipo de plataforma.
Procurada, a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) diz que “tem feito campanhas constantes, nas redes sociais, para educar os apostadores quanto à função principal dos jogos on-line: diversão e não meio de ganhar dinheiro ou fonte de renda”. Ainda diz que há diversos jogos do tipo “slot” e não só o “Fortune Tiger” (nome original do "tigrinho"). E completa: “as bets (casas de apostas) associadas não têm interesse em estimular ou manter o comportamento patológico entre os usuários de suas plataformas, até porque isso não é sustentável para o próprio negócio, além de prejudicar a reputação de setor”.